O corpo é mídia ou o corpo é fato?

O corpo é mídia ou o corpo é fato?

 Como se constrói um corpo permanente

 No post de hoje, vamos conversar sobre um tema importante e ainda pouco discutido entre os profissionais da área: a construção do corpo como processo. Quando digo processo, quero dizer algo que estamos nos constituindo permanentemente – de dentro para fora e de fora para dentro.

Se, particularmente, o último século impôs sobre os corpos um mundo da AVON que une exercício aos ideais de beleza, logo os ginásios, academias e afins tornaram-se espaços de juventude e superação. Vamos para esses locais brincar ou para “nos exercitarmos”? Será que temos resposta para isso?    

 

De máquinas a seres vivos

Evidentemente, não é sobre essa construção de corpo belo ou da superação que desejo falar. Não é sobre o corpo máquina.

Minha intenção é destacar o corpo que se constitui como ser em processo. Aquele que forma desde seu início um coração que pulsa para si e para o mundo, vísceras que se regulam diante da variação do esforço, do metabolismo e músculos que estão se remodelando a todo momento, para além das ideologias de um si mesmo. Um corpo que é vivo. Mais que tudo, que segue se autoconstruindo para os dilemas colocados diariamente.

Tomando a frase de Humberto Maturana e Gilbert Simondon, os seres vivos se designam pelo conjunto de relações que produzem dentro de si mesmos ao mesmo tempo em que estabelecem uma continuidade autopoietica que forma a si mesmo, enquanto forma um mundo para além dele mesmo. Temos uma permanência que nos antecede e uma instabilidade que nos acompanha. Somos o meio e a mensagem.

Os seres inanimados não são capazes de se alterar: eles não produzem em si mesmos mudanças que os movam de um simples estado de existência para outro de modo volitivo ou motivacional. Eles não conservam em si mesmos uma pessoalidade produzida em sua profundidade como parte de sua relação com a superfície.  

Neles, tanto a profundidade e a superfície são separadas pelo tempo. Já nos seres vivos, isso não acontece. Sendo assim, podemos dizer que os seres vivos possuem uma interioridade, constituída dia após dia, transitando de uma pausa a outra, de um equilíbrio a outro. Em seu interior, o corpo é uma rede de conexões, um meio de comunicação que controla duas ordens de grandeza:

  • Mantém-se continuamente agregada enquanto modifica sua organização;
  • Forma em si uma nova realidade de interação para cada variação do meio, sustentando continuamente seu estado de metaestabilidade, variando de um estado de afeto a outro de ser.

Veja que, desta forma, os seres vivos estão continuamente se modificando para interagir.  Como escreveu Simondon (2007), “O vivo é agente e teatro de individuação”.  Sua dimensão de individuação se refere à sua capacidade de resolução contínua para um mundo que nunca se detém. O corpo vivo se adapta reorganizando seu interior, enquanto modifica seu exterior – e não o contrário.

Proposição holística para o conceito de construção de corpo

Varela e Frenk (1987), ao atribuírem à fáscia o termo “órgão da forma”, levantaram uma dimensão e potência para a forma do corpo humano, dada pela tensão geral que ela provoca.

Segundo os autores, os seres vivos têm uma forma e ela significa muito mais do que proporções e relações. Acima de tudo, trata-se de uma dinâmica interna dos sistemas vivos, que pressupõe uma gestão do corpo como “dimensão de espaço”, feita segundo um conjunto de particularidades em sua própria multiplicidade sustentadas por correlações que são estruturas de ações.

Sua existência está atrelada à tensão de seu aparelhamento elástico e tensional que chamamos “fáscia”. Sua presença é fundamental para a produção e existência de cada célula do corpo – esta unidade básica e autopoiética, que se estende para além de si formando, com outras células, outras unidades multicelulares também autopoiéticas, às quais damos o nome de corpo.

Nesta junção dada na matéria prima da matriz extracelular, que organiza uma continuidade e dá força à coesão, o tecido conjuntivo realiza sua existência em morfociclos – vistos particularmente nos organismos multicelulares durante a embriogênese.  Como lembram Varela e Frenk (1987), “em cada localização a mecânica tensional é produzida pelos elementos da célula numa região particular”. Sendo assim, ela pode influenciar as dinâmicas celulares e também ser influenciada por elas, levando estes termos para todo o organismo, num modo transdutivo (termo cunhado por Simondon), que significa estender-se para além de si.

Esta atividade local e global está necessariamente condicionada pela continuidade do tecido fascial por todo o corpo.  Este modo de influenciar a forma faz dela um processador de ondas de ressonância, enquanto as ações mediadas pela atividade elástica tensional dão forma a um corpo em sua extensão. Ao se voltar sobre si, ela mesma estabiliza, mesmo que momentaneamente, uma forma que é fruto de um vínculo e adaptada na mediação de comunicação.  

Em seus estudos e pesquisas da física dos organismos e de sistemas de sustentabilidade, Mae Van Ho (1998), afirma que o tecido conjuntivo atua como um cristal líquido, com alto potencial de organização e capacidade de memória do corpo. Ele se organiza segundo um eixo uniaxial, condizente com o eixo oral até adoral, coincidindo com o eixo da verticalidade do humano.

Com essa afirmação, Ho propõe que o tecido conjuntivo pode vir a ser compreendido por sua dinâmica de proporcionar relações, a ser uma consciência do corpo, uma vez que já está presente em organismos vivos sem uma estrutura com cérebro e sistema nervoso. Mudanças no tecido conjuntivo geram mudanças na sua conformação, o que altera as ligações das moléculas de água, levando à produção de novas proteínas e alterando a forma local.

Veja que interessante: por repetição, tal atividade pode vir a se configurar como nova memória, somando-se e variando com outras já existentes (isto é compatível com a dinâmica da evolução de Darwin e a morfogênese). Segundo Ho, estas mudanças metabólicas vão influenciar todos os outros tecidos do corpo, inclusive os ossos!

O papel do tecido conjuntivo ou cristal líquido

O cérebro é um tema à parte para explicar um controle geral do corpo. Mas para Mae-Wan Ho, o corpo tem uma consciência descentralizada, esparramada por toda a substância fundamental. O tecido conjuntivo permeia o core das células também. Como um líquido excitável, facilitador de rápida comunicação interna do corpo (piezelétrico), ele é um organizador do corpo que lhe confere um estado de coerência geral.

A intercomunicação não local, isto é, que pode ser ressoada à distância, delineia uma singularização pela coerência entre cérebro e corpo, num modo neural-fascial. Este networking com uma memória tissular portadora de experiências prévias e capacidade para novas experiências fica aumentado quando permanece distribuído dinamicamente por todo o organismo.

Como Schleip et al. (2012, p. 92) explicam, a fáscia ainda sustenta uma função como um órgão de intercepção, mostrando que nela há um vasto conjunto de mecanorreceptores não mielinizados, denominados de “receptores intersticiais musculares”, localizados no endomísio e no perimísio, e relacionáveis à ativação do córtex insular que está associado à vida emocional (CRAIG, 2009).

Mover e/ou ser tocado durante a mobilização de todo sistema nas terapêuticas corporais carrega consigo os sentimentos, emoções e todos os estados psíquicos vividos daquele corpo durante as sessões.  Para que possamos compreender como os nossos desejos e necessidades em nossos mundos biológico e humano vêm se desenvolvendo, é fundamental que aprendamos e desvelar as formas construídas pelo órgão da forma – a fáscia, e sua estruturação mais específica de cada tipo de existência, como organização de uma vida (MATURA; VARELA, 2001). Onde a forma estiver presente, sua postura também estará e não há como separá-la de uma consciência do corpo, como afirma Mae-Van Ho (2003).

Imediatismo midiático e o corpo digital

Em paralelo, o imediatismo midiático chama a nossa atenção. Afinal ele se contrapõe ao tempo de formação dos corpos e ao que realmente importa quando falamos de seres humanos.

A tendência à estetização dos gestos dados por padrões de movimentos regulamentados, cujo bem maior é alcançar um resultado de superação de metas, vai na contramão do tempo e da cena de vida de dentro do ser.

O corpo não é ad infinitum. Quem sabe, não seja necessário estar na vertigem, no mergulho vertical, nos desequilíbrios infindos de todas as espécies. Nem seja preciso a desordem tomar um caráter de liberdade, de fonte de prazer, de lúdico.  As estruturas vivas formam um meio que gera bordas e fronteiras!

O ser não se forma na velocidade, mas sim busca se ajustar. O ser não precisa ter força, mas sim ser resiliente. Não precisa ser ágil, pois pode ser astuto. Ele não precisa ser alongado, mas sua flexibilidade o ajuda a se reorganizar. Assim, frente ao espetáculo das performances e da valorização da representação de formas, temos o corpo que não seria um “culto de si”, mas que pode estar no vir a ser um ser “fato a mano” per si.

A vida do corpo tem seu tempo de arar, semear e colher. A única pressa da vida é seu tempo de formar.

Formar uma vida está relacionada ao tempo de realização, que é também o tempo da espera. Somos feitos de material mótil que busca uma tensão e um estado de permanência. Precisamos ir step by step. Digitalmente.

Pense nisso.

Johannes Freiberg
Johannes Freiberg
Criador da Universidade da Fáscia, um dos principais estudiosos brasileiros sobre a temática da Fáscia e Movimento. É Educador Somático, Treinador Master Fascial Fitness, Integrador Estrutural e Artista Marcial (Karate).